URINOTERAPIA: UMA PRÁTICA FISIOLÓGICA?
A prática secular da urinoterapia ressurge entre a
população moderna com o aparecimento de diversos livros, organizações e
sites na Internet sobre o assunto. Mas do ponto de vista científico
pouco se tem visto. Esse ensaio visa, de forma bem modesta, ser um
início.
Ao
se ingerir a própria urina não há como não se perguntar se não iria nos
fazer mal algo que o próprio corpo já está se encarregando de eliminar?
E as substâncias 'tóxicas', no caso, os 'produtos de excreção do
nitrogênio', tais como uréia, ácido úrico e amônia? Porque reintroduzí-los no organismo? Seriam
passíveis de reaproveitamento? Essas linhas que se seguem pretendem nos
introduzir nessas questões. Ao contrário do que se supunha há alguns
anos, hoje, sabe-se que, com a ajuda da microflora intestinal, podemos
reciclar esse nitrogênio.
REAPROVEITAMENTO DO NITROGÊNIO INORGÂNICO DA URINA
O Ciclo do Nitrogênio Não-Protéico no Intestino
Durante
o processo de digestão das proteínas da dieta, o movimento do
nitrogênio é dos intestinos para dentro do organismo. Mas há também um
movimento simultâneo de substâncias nitrogenadas para dentro da luz
intestinal. Estas provêm de variadas fontes: saliva, suco pancreático,
bile, restos celulares, secreção de uréia transluminal, leite materno
ou, na presente questão, da urina ingerida.
A
maior parte do nitrogênio não protéico secretado dentro do trato
digestivo é digerido e reabsorvido, e apenas uma pequena parte deste
nitrogênio é perdido nas fezes. Entretanto, muito do que é reciclado o é
numa forma diversa da qual entrou, graças a ação da microbiota
intestinal, que possuindo enzimas que seus hospedeiros não possuem,
transformam esses substratos nitrogenados não protéicos em formas
assimiláveis por nós.
Através
da utilização da amônia - produto da quebra da uréia pelas ureases
bacterianas - esse N antes não disponível passa então a ser utilizado
para síntese protéica endógena ou síntese de proteínas microbianas,
fornecendo assim aminoácidos essenciais produzidos pela própria flora
intestinal.
Introdução
Os
organismos vivos diferem consideravelmente na sua habilidade em
sintetizar os 20 diferentes aminoácidos. Eles também diferem a respeito
das formas de nitrogênio utilizadas como precursores dos aminoácidos. Os
seres humanos, por exemplo, podem sintetizar apenas 10 dos 20
aminoácidos fundamentais para a biossíntese das proteínas. Os
microorganismos diferem amplamente na sua capacidade de sintetizar
aminoácidos. As enterobacteriaceae, na sua maioria, excetuando os
Lactobacillus, são capazes de sintetizar todos os 20 aminoácidos
necessários para a síntese das proteínas a partir de precursores
simples1. A uréia, por exemplo, pequena molécula com 2 átomos de
nitrogênio, que é o nosso produto de excreção principal, não pode ser
por nós reutilizada diretamente, pois nos falta a enzima urease que a
quebra em duas moléculas de amônia, esta sim para nós utilíssima. Os 10
aminoácidos que são chamados de aminoácidos não-essenciais ou dispensáveis,
são sintetizados por nós a partir da amônia e de várias fontes de
carbono. Os outros 10 que são chamados de aminoácidos essenciais ou
indispensáveis podem ser obtidos a partir da dieta ou, como se sabe
agora, podem também ser obtidos por nós a partir da síntese microbiana
de aminoácidos que, nos nossos intestinos, sintetizam todos os 20
aminoácidos.
Uréia e amônia: reciclando o nitrogênio
A
uréia é o componente final do catabolismo nitrogenado dos mamíferos e a
substância nitrogenada não-protéica de maior concentração nas secreções
digestivas,2 leite materno3 e urina4. Não pode ser metabolizada pelos
macroorganismos a não ser através dos processos metabólicos dos
microorganismos que contêm urease,5 que hidroliza a uréia liberando
amônia, de acordo com a reação: CO(NH2)2 + H2O ® 2NH3 + CO2.
A
amônia (NH3) liberada pela urease bacteriana,6 captada pela veia porta,
fornece então o N para a síntese endógena de aminoácidos dispensáveis
(ou não-essenciais), principalmente via síntese hepática de glutamina e
glutamato.7
Produção endógena de aminoácidos com N reciclado da amônia
Sabe-se,
há muito que, em pessoas com ingestão protéica adequada, ≈
60-70% da uréia produzida pelo metabolismo corporal é excretada na
urina, ao passo que o restante, secretado no trato gastrointestinal,
sofre reciclagem através de degradação pela urease microbiana
intestinal8,9. Esta ação da urease permite que 20-50% do nitrogênio da
uréia hidrolizada em amônia seja reciclado e retorne ao organismo sob a
forma de aminoácidos, enquanto 50-80% retorna como uréia via
ureiagênese.10,11. A proporção de nitrogênio não-protéico reciclado é
inversamente proporcional ao consumo de nitrogênio protéico, ou seja,
quanto menos proteína na dieta, tanto mais eficiente é o processo de
reciclagem do nitrogênio não-protéico12,13. Mas, somente se atinge o
equilíbrio do balanço nitrogenado ou ele se torna positivo quando o N
não-protéico é oferecido em quantidade suficientemente alta14.
Em
estudos com leite materno, o qual contém 20-25% de N não-protéico,
dentre uréia, ácido úrico e creatinina, observou-se uma taxa de retenção
de até 60% para o 15N da uréia.3,15
Em
adultos, estudos demonstram um aproveitamento fisiológico da uréia
total por volta de 25-40%, dependendo, dentre outros fatores, do perfil
dietético, presença de doença concomitante, fase de crescimento e
adaptação microbiológica2,8,9,10,16,17.
Dessa
porcentagem, encontrou-se um reaproveitamento do N de até mais de 80%
na síntese de novos aminoácidos 14. São evidenciados não somente um
aumento da glutamina, como também, em ordem decrescente, de: arginina,
alanina, glicina serina e outros18.
Ainda
nesse sentido, os rins são órgãos que muito contribuem para essa
reciclagem, adicionando amônia ao organismo. Apenas 30% da produção
renal de amônia é liberada na urina, sendo os restantes 70% liberados na
veia renal19.
Produção de aminoácidos indispensáveis pela microbiota intestinal
A
uréia é normalmente secretada no trato digestivo pela saliva, pela bile
e suco gástrico, mas também difunde-se livremente da circulação para
dentro do estômago e intestinos (secreção transluminal), sendo o cólon,
embora menos que o delgado, também permeável a ela.13,20,21 Mas a maior
parte da uréia é proveniente da bile e suco pancreático. A secreção
transluminal também parece ser maior no jejuno que no íleo, restando
pouca uréia ao se entrar no ceco2. Dados demonstram, por exemplo, que
apenas 8% da uréia plasmática foram provenientes do N da amônia fecal
(cólon), sendo a grande parte do intestino delgado.22
É
classicamente aceito que a maior parte da população microbiana é
encontrada no intestino grosso e que o maior local de absorção dos
aminoácidos é o intestino delgado. Isso é verdade, mas o intestino
delgado não é o único local de absorção de aminoácidos nem a atividade
microbiana está confinada ao intestino grosso23. Por isso supunha-se que
as proteínas microbianas não seriam capazes de, tal como nos
ruminantes, exercer algum papel funcional nos não-ruminantes.
Alguma
absorção de aminoácidos ocorre no intestino grosso,19 mas parece mais
provável de estar ocorrendo mesmo no intestino delgado24 conquanto muita
atividade micro-biológica ocorre aí,21 pela grande quantidade de uréia
secretada no início do intestino delgado, chegando a se encontrar para o
íleo uma taxa de metabolismo de 38% da uréia total3.
Estudos
em animais19,24,25 e em humanos 8,17,18, 26, 27,28,29 têm demonstrado o
aparecimento de nitrogênio marcado em aminoácidos indispensáveis tais
como: arginina, valina, leucina, fenilalanina, lisina, histidina e
treonina. Por exemplo, apesar da produção de treonina ser uma das mais
baixas de todos os aminoácidos marcados com 15N, mesmo com as
estimativas das necessidades mínimas estarem em questionamento,30 ela
mostrou-se ser de 3 a 7 vezes maior do que o requerimento padrão
internacional para humanos adultos aceito hoje.31
Uréia ® (microflora) ® amônia ® (macroorganismo) ®
® aa. dispensáveis ® (microflora) ® aa. indispensáveis
Também
parece que microflora não se utiliza somente do N amoniacal proveniente
da quebra da uréia, mas preferencialmente após ter sido reciclado
através da síntese de aminoácidos dispensáveis, principalmente no
fígado, e retornados ao intestino delgado em secreções endógenas ricas
em proteínas, para então ser reutilizado pela microflora2, 32 na síntese
dos aminoácidos indispensáveis, que serão por fim absorvidos e
utilizados na síntese protéica. Desta forma os microorganismos
encontrariam os esqueletos aminoácidos já melhor definidos.
Subestimativa do reaproveitamento
Sabe-se
que ainda que as evidências estejam se acumulando a favor dessa
reciclagem sabemos que essas estimativas sofrem grandes distorções,
provavelmente para menos. As medidas são realizadas em aminoácidos
marcados com 15N no plasma, por sua fácil acessibilidade, sendo
desprezados os aminoácidos intracelulares e intersticiais. As vias
metabólicas pelas quais os aminoácidos são formados são intracelulares,
sendo portanto, a concentração destes (particularmente glutamina e
alanina, que são os maiores produtos da incorporação nitrogenada) maior
dentro das células do que no plasma33.
Adiciona-se
a essa grave distorção outra, não menos importante. Os novos
aminoácidos sintetizados, marcados com 15N, podem estar sendo
incorporados a proteínas ao invés de permanecerem no plasma, fugindo da
busca da incorporação nitrogenada29.
Conclusão
Esses
dados demonstram que essa capacidade de reciclagem tão bem estudada nos
ruminantes existe também nos humanos, e que tem se mostrado ser
fisiológica e quem sabe até mesmo necessária, haja visto que a uréia
representa ≈15% do nitrogênio já no leite materno.
Devido
ao fato de ser a uréia a principal forma final de catabolismo do N,
esse processo de recuperação e reciclagem do Nuréico deverá ter um
impacto considerável não só no balanço nitrogenado de todo o organismo,
mas também nas funções metabólicas específicas que esses aminoácidos
desempenham no corpo.
Belo Horizonte, 28 de abril de 2001.
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